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mai 21, 2024

Nas ondas da Comunicação: desafios nas relações em tempos de redes sociais e inteligência artificial

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Vivemos em uma era onde a comunicação molda nossas interações diárias de maneiras nunca antes imaginadas. As redes sociais e a inteligência artificial transformaram profundamente a forma como compartilhamos informações, nos relacionamos ou, como criticaria o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em seu livro Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos (Zahar, 2004), nos “conectamos”. Tal panorama apresenta uma série de desafios complexos, relacionados tanto à autenticidade e solidez das interações sociais, aspecto também pontuado por Bauman, quanto ao impacto na saúde mental – individual e coletiva –, nas democracias e na privacidade dos indivíduos (ou seriam “usuários”?), como bem nos mostra o documentário O Dilema das Redes (Netflix, 2020), concebido através da presença de especialistas em tecnologia, ex-funcionários das big techs e docentes de renomadas universidades, como Shoshana Zuboff, professora de Harvard e escritora do livro The Age of Surveillance Capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power (Profile Books, 2018) onde pormenoriza com maior profundidade as consequências nefastas deste período.

As redes sociais, com seu poder de “conectar” pessoas de diferentes partes do mundo, em tempo real, abriram novas oportunidades para o diálogo e a expressão. Todavia, também trouxeram à tona questões relevantes sobre a veracidade das informações compartilhadas, a disseminação de notícias falsas e o surgimento de bolhas de filtro que limitam nossa exposição a diferentes pontos de vista – verdadeiras “novas realidades” –.

Ao mesmo tempo, a inteligência artificial está cada vez mais presente em nossas vidas, influenciando desde os algoritmos que determinam o que vemos em nossos feeds de notícias até os assistentes virtuais que nos ajudam no dia a dia. Embora traga benefícios em termos de eficiência e personalização, também levanta preocupações sobre o uso ético dos dados pessoais, o potencial de viés algorítmico e aspectos vinculados à autoralidade do conteúdo, como bem expôs o filósofo e linguista estadunidense, Noam Chomsky, professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT – Instituto de Tecnologia de Massachusetts).

Pioneiro na definição do conceito de “modernidade líquida”, trabalhado em publicação homônima (Zahar, 2001), Bauman, em seu estudo, desenvolve ideias pertinentes para entendermos as mudanças fundamentais que ocorreram na sociedade “pós-moderna”, avaliando criticamente as mudanças nas relações humanas, instituições e culturas – moldando nossa compreensão das forças que impulsionam e impulsionaram o mundo dito “contemporâneo” –.

Neste contexto, as estruturas sociais são vistas como menos sólidas, mais fluidas, caracterizadas por relações efêmeras e voláteis, ambíguas, líquidas, onde os vínculos são temporários e superficiais, não vistos sob a ótica do “relacionamento”, mas visto enquanto “conexões”, também detalhadas pela socióloga norte-americana bell hooks em seu livro Tudo sobre o Amor: novas perspectivas (Editora Elefante, 2021). Por sua vez, as redes sociais e aplicativos são uma manifestação concreta da modernidade líquida, permitindo a criação e a destruição rápida de laços sociais tão logo são estabelecidos. Como bem expos Bauman em Amor Líquido (2004), “talvez seja por isso que, em vez de relatar suas experiências e expectativas utilizando termos como ‘relacionar-se’ e ‘relacionamentos’, as pessoas falem cada vez mais […] em conexões, ou ‘conectar-se’ e ‘ser conectado’. Em vez de parceiros, preferem falar em ‘redes’. […] Diferentemente de ‘relações’, ‘parentescos’, ‘parcerias’ e noções similares – que ressaltam o engajamento mútuo ao mesmo tempo em que silenciosamente excluem ou omitem o seu oposto, a falta de compromisso –, uma ‘rede’ serve de matriz tanto para conectar quanto para desconectar; não é possível imaginá-la sem as duas possibilidades. ” (Bauman, p.12)

A solidão, de acordo com Bauman, é a grande ameaça da modernidade líquida. Apesar de estarmos “mais conectados” do que nunca graças à tecnologia, muitas pessoas se sentem isoladas, solitárias. As relações transitórias e superficiais que caracterizam as redes sociais são correlatas de um aumento significativo de sentimentos de solidão. Na nossa visão, elas não substituem, ou melhor, não deveriam substituir, as “relações”, “parentescos” e “parcerias” humanas que, com o perdão do pleonasmo, tornaram-se humanos, como bem exemplificado pela antropóloga norte-americana Margaret Mead em seu clássico exemplo do fêmur curado como marcador da “civilização humana” – se, mesmo ao partir, o osso está curado, é sinal de que alguém cuidou, abrigou e alimentou o indivíduo, protegendo-o ao invés de abandoná-lo à própria sorte, como mais rotineiramente veríamos acontecer entre os animais –.  

Voltando à nossa análise, a constante busca por validação e aceitação nas redes sociais também pode levar-nos à dependência e a sentimentos de inadequação quando as expectativas não são atendidas ou tão tangíveis quanto as expectativas depositadas. Na modernidade líquida, a (auto)identidade é, muitas vezes, vistas apenas através de representações online, avatares, que não refletem a realidade complexa do indivíduo e da sociedade que ele está inserido.
Este ponto é fundamental para entendermos as consequências psicológicas da vida em uma sociedade líquida, onde a “relação” é frequentemente sacrificada em favor de interações superficiais e transitórias, ambíguas e descartáveis: “conexões”, tão logo estabelecidas quanto desmontadas, tão logo inseridas quanto afastadas – assustadoramente como a inserção de um pen-drive em um dispositivo eletrônico ou o acesso a uma rede wireless –. Fenômeno catalisado – ou mesmo produzido – pelas tecnologias digitais.

As relações líquidas criam uma cultura de incerteza, onde as normas e regras, tácitas, ou não, estão em constante mudança. Obviamente, isto causa ansiedade, uma vez que as pessoas são forçadas a se adaptarem a novos comportamentos e expectativas com vínculos sociais cada vez mais sujeitos e avaliados à desconfiança.

Corroborando com as ideias de Bauman bem como dos demais teóricos (e teóricas) citados anteriormente, o arcebispo de Santa Maria, D. Leomar Brustolin, em seu artigo “Ética e a era do vazio” (2024), argumenta que se constata hoje a passagem de uma única moral objetiva para as muitas opções éticas. “Isso leva a um niilismo, no qual o ser humano caminha sem muitas balizas, tudo é livre e permitido e acaba-se vivendo o dia a dia sem um grande ideal ou meta para a existência. O mundo se tornou um mar aberto. O que vale é o acontecimento e não a realização de um projeto. Trata-se de uma ética que não prevê nada de seguro, estável e fixo. Não há terra firme, apenas o mar aberto”.  

Para o religioso, a ética que deriva dessa situação é uma ética que dissolve certezas e se configura como ética do passageiro, do viajante, que não apela à lei, ao direito ou à norma, mas à experiência. O humano, desterritorializado, tem referências pontuais, anda perdido, ou, como diria Ailton Krenak em seu livro Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das Letras, 2020), sequer é visto como parte da própria “humanidade”.

Assim, o ser humano sem saber o que fazer (ou não fazer), perde o sentido último do seu sofrer, do seu festejar e o seu “ser” – livre –. A liberdade fica reduzida a uma suposta “espontaneidade”. Nessa falta de ética, percebe-se um terrível vazio interior, uma perda generalizada da esperança e de sentido, o obscurecimento da inteligência e uma enorme carência de espiritualidade. 

É preciso ter ciência que, nas palavras de Dom Leomar, “o ser humano nasceu para olhar para o alto, é peregrino do céu com os pés bem firmes sobre a terra”.

Comunicação na Fratelli Tutti

No coração da fé cristã, a fraternidade e a amizade assumem um papel central, convocando-nos a enxergar além das fronteiras que nos separam e a reconhecer a humanidade compartilhada que nos une. É neste contexto que a Campanha da Fraternidade de 2024 emergiu, com seu tema inspirador: "Fraternidade e amizade social", e seu lema igualmente transformador: "Vós sois todos irmãos e irmãs" (cf. Mt 23,8).

Assim, somos convidados a mergulhar na essência da fraternidade humana, que vai além de nossos gostos pessoais, afetos individuais e preferências isoladas. A proposta é despertar para a beleza de uma fraternidade aberta a todos, independentemente de diferenças, em um caminho de verdadeira penitência e conversão.

À medida que nos encontramos diante de desafios globais sem precedentes, como desigualdade, intolerância e divisão, a mensagem da Campanha da Fraternidade ressoa como um chamado à unidade e solidariedade. É um convite para olharmos uns aos outros com compaixão, acolhermos a diversidade como uma dádiva e construirmos pontes que transcendam as barreiras que nos separam. E para ajudar neste processo, a igreja se inspirou na encíclica "Fratelli Tutti" do Papa Francisco, datada de 3 de outubro de 2020, documento essencial da sua Doutrina Social. Ela se insere na linha de ensinamentos que incluem também a encíclica "Laudato Si'", focada na ecologia integral. 

A Fratelli Tutti, título cuja tradução seria “Todos irmãos” deve passar do discurso para a prática – do trabalho e ação de todos – para gerar fraternidade e amizade social. É o foco, o objetivo, que não pode ficar ofuscado.

O Papa Francisco, ao se comunicar, identifica-se com a comunicação e, por meio dela, expressa-se por palavras e gestos, pelas expressões do rosto e das mãos, pelas pausas silenciosas que antecedem ou concluem uma ideia, mais densa ou que precisa chegar ao coração de todos, igualmente e sobretudo aos mais simples. Sua mensagem passa pelo seu testemunho de vida.

Dos oito capítulos da encíclica Fratelli Tutti a comunicação é abordada em cinco, além de ser mencionada em 16 parágrafos e merecer um dos subtítulos do capítulo I. A comunicação é elemento importante da encíclica. A Fratelli Tutti, no capítulo “Diálogo e amizade social” – para que todos sejam irmãos – registra de maneira lúcida a missão da comunicação:

“Neste mundo globalizado, os meios de comunicação podem ajudar a sentir-nos mais próximos uns dos outros; a fazer-nos perceber um renovado sentido de unidade da família humana, que impele à solidariedade e a um compromisso sério para uma vida mais digna. Podem ajudar-nos nisso, especialmente nos nossos dias, em que as redes de comunicação humana atingiram progressos sem precedentes. Particularmente a internet pode oferecer maiores possibilidades de encontro e de solidariedade entre todos; e isso é uma coisa boa, é um dom de Deus. Mas é necessário verificar, continuamente, que as formas de comunicação atuais nos orientem efetivamente para o encontro generoso, a busca sincera da verdade íntegra, o serviço, a proximidade com os últimos e o compromisso de construir o bem comum. Ao mesmo tempo, não podemos aceitar um mundo digital projetado para explorar as nossas fraquezas e trazer à tona o pior das pessoas” (FRANCISCO, 2020, n. 205).

A comunicação é dom e missão. É vocação e tarefa. É instrumento e estratégia. 

Rumo à Presença Plena: uma reflexão sobre a participação nas redes sociais

O Dicastério para a Comunicação do Vaticano publicou, no dia 28 de maio de 2023, o documento intitulado Rumo à Presença Plena: uma reflexão pastoral sobre a participação nas redes sociais. O documento é resultado de reflexões conjuntas de especialistas, professores, jovens profissionais e líderes, leigos, clérigos e religiosos.

O texto aborda o papel e os desafios enfrentados pela Igreja Católica nas redes sociais digitais, destacando a importância da comunicação nesse contexto. Baseando-se no documento "Rumo à Presença Plena", são apresentadas sete lições cruciais para uma abordagem eficaz da comunicação católica nesse ambiente em constante evolução.

1. Redescoberta do encontro humano: a comunicação digital não pode substituir a essência do encontro humano. Embora as redes sociais possam ampliar o alcance das interações, é crucial reconhecer a importância do contato pessoal e da conexão interpessoal genuína.

2. Cultura do encontro e proximidade: a Igreja é desafiada a promover uma cultura de encontro, diálogo e proximidade nas redes sociais. Isso significa criar espaços onde as pessoas se sintam valorizadas, ouvidas e compreendidas, construindo relacionamentos que promovam o respeito mútuo e a solidariedade.

3. Desigualdades nas redes sociais: as desigualdades sociais se refletem no ambiente digital, onde nem todos têm igual acesso e oportunidades. A Igreja é chamada a defender a democratização da comunicação, garantindo que todos tenham voz e participação ativa nas redes sociais.

4. Combate à indiferença e polarização: as redes sociais muitas vezes amplificam a indiferença, polarização e extremismo. A Igreja deve ser um agente de paz e reconciliação, promovendo o diálogo construtivo e a compreensão mútua em um contexto marcado pela diversidade de opiniões e pontos de vista.

5. Importância da escuta atenta: a escuta atenta é fundamental para uma comunicação eficaz e autêntica. Isso envolve não apenas ouvir, mas também compreender e valorizar as experiências e perspectivas dos outros, cultivando a empatia e o respeito nas interações online.

6. Superficialidade e desinformação: a disseminação de desinformação e notícias falsas nas redes sociais representa um desafio significativo. A Igreja é chamada a promover uma comunicação responsável e comprometida com a verdade, incentivando a reflexão crítica e o discernimento nas interações online.

7. Rejeição à violência e ao ódio: a propagação de discursos de ódio e violência contradiz os valores fundamentais do cristianismo. A Igreja deve denunciar e combater qualquer forma de intolerância e discriminação, promovendo uma cultura de paz, justiça e fraternidade nas redes sociais.

Diante do notável progresso da inteligência artificial e sua crescente influência na vida humana, é imperativo que nos mantenhamos vigilantes e engajados em um diálogo aberto sobre o impacto dessas novas tecnologias. A reflexão ética torna-se crucial não apenas no campo da inteligência artificial, mas também nas interações humanas mediadas por ela. É essencial garantir que essas ferramentas tecnológicas estejam a serviço da humanidade, promovendo a justiça, a inclusão, a paz, a democracia. Ao proteger a dignidade humana e fomentar uma fraternidade verdadeira e inclusiva, podemos enfrentar tais desafios em tempos tão “líquidos”, navegando nas ondas da comunicação com responsabilidade e compromisso comum.

Bernardete Chiesa

Bernardete Chiesa

Jornalista, mestra em Gestão Educacional e membro da Equipe de Comunicação da Província Brasileira dos Josefinos de Murialdo